reportagem especial

PONTE E TRAJETÓRIAS INTERROMPIDAS: tragédia no Jacuí, há 10 anos, deixou cinco mortos

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data-filename="retriever" style="width: 100%;">Foto: Reprodução

A imagem, captada pela câmera do vice-prefeito de Agudo, Hilberto Boeck, morto na tragédia, mostra o momento em que a estrutura começa a desabar. Foi último registro, o mais fiel documento histórico imagético da tragédia que tirou a vida de cinco pessoas e feriu uma dezena. A foto mostra pessoas caindo às 8h51min de 5 de janeiro de 2010. As fotos só foram reveladas mais de um mês depois em um estúdio fotográfico de Agudo, quando homens que trabalham perto dos escombros da ponte encontraram o equipamento.

No dia da catástrofe, também foi a potência da comunicação, por meio do registro radiofônico do repórter da Rádio local, Márcio Nunes, que informou a população da região e, em seguida, do país sobre o desastre no interior do Rio Grande do Sul. Nunes narrou a queda da ponte ao vivo, com palavras de desespero e pedidos de socorro. O pequeno município de Agudo, com cerca de 17 mil habitantes ganhou holofotes internacionais.

No domingo, completa-se 10 anos da queda da ponte. A Região Central jamais esqueceu o duro golpe sofrido na manhã daquele janeiro chuvoso quando parte da estrutura sobre o Rio Jacuí, na RSC-287, entre Restinga Sêca e Agudo, veio abaixo diante dos olhos de moradores da região. Ponte e trajetórias foram rompidas.

style="width: 100%;" data-filename="retriever">Foto: Lauro Alves (Arquivo Diário)

Cinco pessoas morreram na tragédia do Jacuí. Entre elas, o vice-prefeito de Agudo, Hilberto Boeck, 55 anos, tragado pelas águas do rio, cujo corpo foi encontrado no dia 7 de janeiro.

Na mesma data, também foram localizados Renato Camargo, 42 anos e Lori Dumke, 56 anos. Somente na manhã do dia 15, mergulhadores encontram Nelo dos Santos, 29, a cerca de 2 quilômetros da ponte. À tarde, foi encontrado o corpo de Denizi Dumke, 31 anos, namorada de Nelo e filha de Lori.

REPORTAGEM ESPECIAL: Uma década após queda da ponte de Agudo, apenas uma família foi indenizada

Passados 10 anos, acompanhe o relato de pessoas que presenciaram e comunicaram o desastre, dos que conseguiram escapar da morte, de quem ajudou a salvar vidas e daqueles que acabaram perdendo amigos e familiares. 

OS COMUNICADORES

O áudio que rodou o país

style="width: 100%;" data-filename="retriever">Fotos: Renan Mattos (Diário)

Acaba de cair a ponte (...) Tinha gente em cima da ponte, homem de Deus. Tem amigos nossos que estavam em cima (...) gente pedindo socorro, descendo rio abaixo (...) manda gente para ajudar aqui: Brigada, helicóptero ... "

Já fazia 12 anos que Márcio Nunes, hoje com 41 anos, trabalhava como radialista quando anunciou ao vivo a maior tragédia do Agudo e o fato mais emblemático da sua carreira.

Passados 10 anos, a narração da queda da ponte costuma ser o primeira memória da maioria dos moradores do município que ouviam a Rádio Agudo naquela manhã. O que era para ser mais um boletim informativo, virou um pedido de socorro e a única comunicação em tempo real. O áudio da notícia, às 8h58min, conforme o radialista, rodou o país e foi reproduzido em diversos noticiários. A cada ano, quando janeiro se aproxima, as lembranças se tornam mais vivas:

- O assunto sempre volta. Foi o que mais marcou minha profissão, especialmente pelos amigos que nos deixaram.

Fotógrafo local guarda 4 mil imagens da época

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A câmera usada em 5 de janeiro de 2010 e nos dias seguintes à queda da ponte é guardada pelo fotógrafo Erni Bock com apreço. Foi com o equipamento que ele documentou milhares de acontecimentos que sucederam o desabamento. Fotógrafo local e principal profissional da área da pequena cidade, Bock não esteve sobre a estrutura quando ela ruiu por um triz. É que no caminho, ele foi surpreendido por cenas pouco comuns em meio o aguaceiro e quis registrar cada detalhe. Há dias, ele acompanhava de perto uma das maiores enchentes da história recente de Agudo e da região: 

- O pessoal estava sem água para tomar banho. Tudo ao redor estava interditado, alagado. Eram estradas, lavouras alagadas...Fui fotografar uma escola que tinha sido inundada e um rapaz que tentava salvar sua caixa de som. Perdi uns 10 minutos naquilo ali. Entrei no carro para ir para o local e ouvi o repórter da rádio daqui dizer: caiu a ponte, caiu a ponte... 

MAIOR ENCHENTE DESDE 1941

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Do armazém de Milton Dario Temp, 80 anos, e Leonia Loose Temp, 70 anos, dava para ver a água que invadia o asfalto da RST-348. Na vizinhança, teve casa em que a "água entrava por baixo da porta e saía pela janela", segundo o casal. Teve quem perdeu alimentos estocados e eletrodomésticos. No estabelecimento dos Temp, alguns móveis precisaram ser erguidos, mas não houve perdas. Leonia lembra que a mãe costumava contar da violenta enchente de 1941, a qual teria sido semelhante a de 2010.

- Eu nunca tinha visto coisa igual. Muito falam do ano de 1941, que alagou tudo. Mas para arrebentar uma ponte daquelas (em 2010), teve que ser até pior, não é? -questiona Temp.

QUEM SALVOU

"Não sabíamos quem salvar primeiro"

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Jeferson Temp, 47 anos, filho de Milton e Leonia, conta que se criou nadando no Rio Jacuí, mas quando deparou com a cena da ponte quase não acreditou no que viu. De barco, junto de outros vizinhos e de servidores da prefeitura, foi um dos primeiros a chegar no local, antes mesmo dos bombeiros.

- Chegamos pelo leito do rio. Até aquele momento, o pessoal vinha pelas lavouras, mas como o barranco era alto, estavam sem acesso. A gente tinha uma ideia da coisa, mas o fato era outro. Ficamos assustados, não sabíamos quem salvar primeiro e nem como salvar. Eram pessoas em árvores, e galhos que pegavam embaixo do motor do barco. Todos conhecidos nossos. Tiramos primeiro o seu Dumke, hoje falecido, e que estava com a perna quebrada no dia. Todos pediam para tirar ele. antes. Usamos cordas, encostamos no meio de matos, mas com muita correnteza da água. O medo era de trancar o barco e nós sermos vítimas também - lembra o agricultor.

QUEM CONSEGUIU SE SALVAR

"Saber nadar foi o que me manteve vivo"

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Sergio Goltz, hoje com 60 anos, evita como poucos falar sobre o que vivenciou. Não gosta de relembrar e diz que "tudo acontece por algum motivo na vida". Pai de dois filhos, Goltz conta que, ao sair da água, a primeira coisa que fez foi tentar ligar para a esposa e avisar que permanecia vivo. Ele lembra que a queda da ponte trouxe danos para a comunicação na região. Dois cabos de fibra óptica se romperam: da Embratel e da Oi/Brasil Telecom. Por horas, a cidade ficou incomunicável, o que aumentava a angústia de quem estava longe da ponte:

- Do momento que caí, lembro de tentar erguer a cabeça para respirar e a água me empurrar para baixo. Eu cheguei a ver pessoas segurando os arbustos. Calculei mentalmente a distância, a força da água e o ponto que eu tinha que chegar sem que o rio me levasse. Nadei cinco metros e consegui me salvar. Saber nadar foi o que me manteve vivo. 

"Até hoje tomo um comprimido para conseguir dormir"

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O agricultor Silmar Wilhelm,59 anos, caminhava de um lado da ponte, cerca de 30 metros de onde a estrutura desmoronou. Ele havia saído de casa alarmado pelo aguaceiro. Já sobre a ponte, ouviu um estalo e, ao olhar para trás, avistou uma nuvem de poeira. Foram segundos. Ele tentou correr, mas foi em vão. Afundou em meio blocos de concreto e ferros.

- Quando caí no rio, a água se abriu e parecia que borbulhava. Tentei me salvar, pois sei nadar, mas não consegui do mesmo jeito de quando eu era novo. Tinha ferro, pedra, tudo. Me segurei nas moitas. Meu amigo, que também havia caído, chamava: "socorro, socorro" mas não tinha nada na hora. Só depois os barcos apareceram. Quando saí da água pensei: tive mais uma chance. Voltei do posto de saúde, vim para casa, sentei no sofá e não conseguia nem falar. Por dias, eu só sonhava coisa ruim. Fui para o médico e até hoje tomo um comprimido para conseguir dormir. Eu não desejo para ninguém passar por isso - relata.

Para Wilhelm, o local da tragédia ainda carece de uma sinalização, placa ou espécie de homenagem que lembre as vítimas.


A DOR DE QUEM PERDEU AMIGOS E FAMILIARES

"Não passo na ponte sem lembrar "

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O município perdeu um amigo e um de seus representantes, mas Leni Hoerb Boeck hoje, com 65 anos, sofreu a perda do esposo, pai de seus filhos e avô carinhoso do neto. Em casa, fotografias de Boeck enfeitam as estantes. À eminência de qualquer data comemorativa, Leni conta que se vê diante da mesma pergunta desde 5 de janeiro de 2010: Por quê?

- Por que a gente teve que passar por isso? Volta e meia conto com a psicóloga e vai tentando enfrentar. Ele faz tanta falta. Era uma pessoa dada com todos, se envolvia, era tão bom. No dia, eu estava junto com ele, mas parei para conversar com uma amiga. Não era para ser minha hora. De vez em quando, me vem aquela angústia, aquela saudade..mas vamos levando. Até hoje, não passo na ponte sem lembrar - conta.

"Em cinco gestões, foi o pior momento da minha vida pública"

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Também foi pela rádio que Ari Alves da Anunciação, prefeito de Agudo na época, soube do acontecimento de 5 de janeiro de 2010:

- Em cinco gestões, foi o pior momento da minha vida pública. Chegar lá e não poder fazer nada, ver toda aquela gente... Economicamente foi um baque, Agudo perdeu muito, e o Estado também, pois era uma ponte estadual. Mas nada pior do que as vidas que se foram. Eram tudo gente de casa, vizinhos e o meu vice Hilberto Boeck: um homem jovem e dedicado, que deixou os filhos e a esposa. Ele passou a noite anterior resgatando gente dos alagamentos, não deu para acreditar. Era um cara honesto, que tinha tudo para ser prefeito.

Além vice-prefeito, Boeck também era chefe da Defesa Civil de Agudo.

TRANSTORNOS 
À época, o trânsito mudou e passou a ser por Dona Francisca, saindo no Recanto Maestro. Conforme o ex-prefeito, as estradas não eram preparadas para tanto movimento. Em abril daquele ano, começou a funcionar a balsa do Jacuí - de Agudo até a localidade de Vila Rosa, em Restinga Sêca. A travessia entre as cidades foi uma medida emergencial doo governo do Estado, o desvio ao trecho interrompido na RSC-287.

O inverno chuvoso de 2010 trouxe transtorno às vias onde passavam ônibus e caminhões. Segundo Anunciação "não tinha patrola ou qualquer maquinário que desse conta ".

- Não gosto nem de lembrar. Passei noites sem dormir, precisei de ajuda psicológica.Tu assistes pela TV e não imaginas que um dia vai acontecer contigo. Perdemos cinco pessoas. Hoje, eu só agradeço a solidariedade do povo de Agudo e a ajuda de toda região. Não teve adversário político, nada disso. O Estado recompôs a ponte em menos de um ano, e a gente tocou por aqui. O que ainda segue é o sentimento de dor e perda.

A nova ponte, inaugurada em 3 dezembro de 2010, teve um investimento de cerca de R$ 53 milhões e recebeu o nome de Travessia Hilberto Boeck, uma homenagem ao vice-prefeito que perdeu a vida na tragédia. Também foi popularizada como Ponte da Solidariedade.

Como foi o 5 de janeiro de 2010

style="width: 100%;" data-filename="retriever">Foto: Claudio Vaz (Arquivo Diário) 

  • Uma parte da ponte sobre o Rio Jacuí, no limite entre Restinga Sêca e Agudo, ruiu. A estrutura que caiu tinha entre 80 e 100 metros. No total, a ponte tinha 314 metros. No momento da queda, cerca de 20 moradores da região estavam sobre a ponte, tirando fotos ou observando a cheia do rio, que estava 9 metros acima do nível normal
  • Dois veículos também caíram no rio
  • Voluntários chegaram avisados por testemunhas e pela transmissão da Rádio Agudo
  • Ao longo do dia, foram encontrados os primeiros sobreviventes
  • O rompimento da estrutura causou transtornos na RSC-287 para chegar à Capital, a cidades do Vale do Rio Pardo e da Quarta Colônia
  • A então governadora do Estado Yeda Crusius (PSDB) sobrevoou o local ao lado do então prefeito de Santa Maria Cezar Schirmer (MDB)
  • O trânsito foi interrompido no km 192
  • Às 19h30min, as equipes de resgate encerraram os trabalhos do 1º dia

style="width: 100%;" data-filename="retriever">Foto: Erni Bock (Divulgação)

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